Que mudanças vieram para ficar?
Imagine a cena. Estamos adormecidos. Segue uma noite longa onde se ouve ao longe ruído de bombas, choros, passos apressados. No sonho de todos que dormem uma ave voa atordoada do outro lado da janela. Ficamos do lado de dentro do quarto observando intrigados a ave alvoroçada do lado de fora. Nos sentimos protegidos ali.
A ave voa em nossa direção e bate com força contra o vidro da janela. Morre diante de nossos olhos e não podemos fazer nada. Achamos que o vidro nos protege e na sequência, pouco depois, uma outra ave se choca contra a janela e agora o vidro começa a apresentar rachaduras. Até que a terceira ave vem com ainda mais força, quebra a janela, arranha nossa face, entra em nosso quarto e sai derrubando nossas coisas e sujando nossos móveis até desfalecer imóvel sobre os lençóis brancos de nossa cama.
O despertador toca e acordamos. A noite foi ruim. Não dá vontade de se levantar e ao mesmo tempo queremos esquecer o terrível sonho. Tomamos nosso café como todos os dias e diante da televisão a notícia que coletivamente e inconscientemente todos temíamos é anunciada por um jornalista com ar fúnebre – “uma pandemia assola o planeta!”
Assim como o pássaro de nosso sonho assustador, ela invade a proteção de nosso dia-a-dia previsível e bate na tela da TV, do celular e do computador. Não parece que seja conosco. Começa na China que sempre achamos ficava tão longe que nada de lá poderia chegar aqui, na nossa sala, no nosso quarto, a não ser claro em seus muitos produtos importados.
No dia seguinte, contudo, na mesma hora do café, a tela digital começa a expor as rachaduras da janela protetora e aquilo que parecia tão distante, está ao nosso lado. Aterrorizante, inexplicável e ameaçador. Até que numa manhã ainda mais sombria, como a manhã de hoje, acordamos com a notícia de que todo o comércio estará fechado e estamos fadados a estar confinados em nossas própria casas – prisioneiros do caos.
Estamos vivendo as cenas de um triste pesadelo.
Como lidar com este pássaro que invade nosso quarto, rouba nossa paz e nosso sonho? Como lidar com o desassossego dessa situação? Porque o intruso quando invade nosso mundo conhecido não deixa nada no mesmo lugar. Macula nossos livros, derruba nossos cristais mais preciosos, suja o chão que pisamos descalços. Derruba tudo que sabíamos até o momento e de nada servem nossos antigos planos. Todos suspensos. Todos interrompidos enquanto o pássaro ferido esparrama sua algazarra mortal pra todo lado.
Paralisamos.
Depois do descrédito inicial, nos propomos a fazer algo, mas o que podemos fazer é limitado. Ouvimos através da janela digital que basta ficar em casa como se fosse fácil tal medida para qualquer um de nós.
Impotência, medo, raiva, cansaço, desamparo…
Como se não bastasse, ficar em casa não é o suficiente porque um dos seus amados – filho, pai, mãe, irmão, melhor amigo – pode ser sequestrado pelo pássaro e levado em suas asas para o lugar de onde ninguém volta. Diante disso, não tememos apenas por nós mesmos e nos furtamos a sequer encostar em quem mais amamos para protegê-lo. Assim o sonho medonho se torna realidade para todos nós.
Quero, contudo, apresentar outra versão para essa estória. Na minha versão ao avesso, foi o vírus que nos despertou de um longo sono. Ser coletivo que somos, adormecidos estávamos em nossas vidinhas e não nos demos conta de que menos é mais.
No outro sonho que me chega, estamos na verdade acostumados com um pássaro que em plena luz do dia vive em nosso quarto invadindo nossa paz, roubando nossa saúde mental e nos adoecendo fisicamente porque vivemos para ter sempre mais, para fazer mais, para sermos mais do que somos. Atropelamos o tempo e as pessoas que amamos para consumir mais, poluir mais e ao olhar no espelho, somos nós o pássaro que invade o quarto do nosso planeta e que suja, quebra e destrói.
Somos os nossos próprios algozes. O vírus é nosso despertador.
Então acordamos por uns instantes durante esse isolamento forçados a viver com menos – menos agitação, menos poluição, menos informação, menos dinheiro, menos consumo, menos tudo. E no meio desse “menos” encontramos mais paz, mais centramento, mais conexão com a gente mesmo e com os outros, mais solidariedade, mais poder pessoal.
A noite vai passar. As quarentenas em algum momento se encerrarão e a grande pergunta é se vamos retornar para a nossa vida antiga, pássaros destruidores que somos, ou se vamos decidir despertar de vez para uma escolha simples onde menos é mais.
Eu cá fico na torcida que coletivamente possamos despertar e ver que afinal podemos renegociar nossa forma de trabalho e que o mundo não pára se muitos de nós trabalharmos de casa, que o mundo não pára se sairmos menos, consumirmos menos e convivermos mais.
O tempo dirá.
Beijo de cotovelo,
Luciane Schütte
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